Obsolescência Programada (D.O.P.E.)
De acordo com a Wikipédia, "Obsolescência programada é a decisão do produtor propositalmente desenvolver, fabricar, distribuir e vender um produto para consumo de forma que se torne obsoleto ou não funcional especificamente para forçar o consumidor a comprar a nova geração do produto". Seus primeiros relatos remontam à década de 1920.
Um século depois, Cory Doctorow cunhou o neologismo Enshittification. Nas palavras dele: “É assim que as plataformas morrem: primeiro, elas são boas para seus usuários; então, elas abusam de seus usuários para tornar as coisas melhores para seus clientes empresariais; finalmente, elas abusam desses clientes empresariais para recuperar todo o valor para si mesmas. Então, elas morrem. Eu chamo isso de Enshittification”.
O texto abaixo inaugura a série Da Obsolescência Programada à Enshittification (D.O.P.E.) 1. Ao longo de nove postagens 2 (talvez mais, talvez menos), falarei tanto dessa velha prática quanto deste "fantasma sem face ou forma" 3 que nos assombra diariamente. Também abordarei temas correlatos, como o apagamento da memória cultural e como andar na contramão de tudo isso (mesmo sob o risco de ser atropelado).
O conteúdo é fruto de vídeos e documentários que assisti, artigos e livros que li, assim como das reflexões e interações que fiz na última década. Algumas delas registradas em notas esparsas que agora reúno com o mínimo de coerência e coesão.
Hoje, o termo Obsolescência Programada já está bem disseminado, mas quando o conheci, em 2012, era algo relativamente novo nas discussões. Acredito que meu primeiro contato com o tema foi ouvindo o Piratacast 43, lançado naquele ano e que segue relevante ainda hoje. Além de discorrer sobre os diferentes tipos de obsolescência, há também a indicação do vídeo Story of Stuff (2007) e do documentário The Light Bulb Conspiracy (Prêt-à-jeter, 2010).
Este último, com certeza, foi a principal porta de entrada para o tema à época. O documentário faz um escorço histórico sobre as práticas da Indústria, sendo a mais emblemática delas a redução proposital da vida útil das lâmpadas, promovida pelo Cartel Phoebus. Ao final, mostra algo que causou espanto para muitos: o erro de uma impressora jato de tinta que era, na verdade, uma programação intencional do fabricante para que o equipamento parasse de funcionar após determinado número de impressões. Tal erro foi corrigido com um software russo que zerava o contador. O título do livro de Giles Slade, um dos entrevistados, sintetiza muito bem tudo isso: Made to Break: Technology and Obsolescence in America.
Cabe resssaltar que a Obsolescência Programada também usa modismos como seus aliados. Isso inclui tanto o design estético quanto o funcional. Antigos celulares, players de música, teclados e mouses contavam com pilhas e/ou baterias removíveis; hoje, em regra, elas vêm embutidas (seladas) nos aparelhos. O novo padrão impede a troca rápida do "módulo de energia". Também impossibilita que o usuário leigo (não-entusiasta) faça a substituição das baterias quando estas chegam ao final de sua vida útil.
Além disso, se o hardware (parte física) resiste, cria-se um entrave via software (parte não tangível). O exemplo mais patente deste último está no smartphone. Ele não só aglutinou funções de outros aparelhos (telefone celular, câmera fotográfica, player de música e vídeo etc.) como também passou a ter seu sistema operacional e aplicativos atualizáveis.
Estes últimos, os apps, tornaram-se parte essencial do cotidiano, mesmo contra nossa vontade: desde operações bancárias, comunicação profissional ou pessoal, uso de transporte coletivo ou individual (e até mesmo para usar um banheiro público, se você estiver na Suécia). Sejam motivadas pelas novidades ou pela suposta segurança, há atualizações constantes de software. Muitas vezes, com frequência diária.
Enquanto antigos aparelhos traziam sistemas embarcados, "imutáveis", os novos possibilitam mudanças tanto visuais quanto funcionais. Em tese, é algo positivo, pois nos dá acesso a sistemas e apps novos sem a necessidade de troca do equipamento, dando maior sobrevida a ele. Na prática, no mais das vezes, o que temos são atualizações que tornam os aplicativos ou até o próprio sistema operacional lento, nem sempre de forma justificada.
E, mesmo com hardware e software resistindo bravamente, há a limitação de suporte depois de alguns anos do lançamento do aparelho. Ou seja: mesmo que ele seja tecnicamente capaz de rodar com bom desempenho as novas versões do sistema operacional e de seus aplicativos, após este período, as atualizações serão recusadas. O que força a compra de um novo smartphone não por uma limitação de ordem material, mas sim conceitual ou até mesmo social:
Saindo dos smartphones e adentrando o mundo dos computadores, a Obsolescência Programada chega ao paroxismo em posicionamentos como o que segue. Em 14 de outubro de 2025, termina o suporte ao sistema operacional Windows 10. Para instalar o Windows 11, há uma série de requisitos que deixarão de fora muitos computadores plenamente funcionais, até mesmo alguns relativamente novos. A sugestão da Microsoft neste caso é para que você leve seu computador para "reciclagem", um eufemismo para "jogá-lo no lixo". Algo que remete a outro documentário da mesma diretora de The Light Bulb Conspiracy (Prêt-à-jeter, 2010) chamado A Tragédia do Lixo Eletrônico (The E-Waste Tragedy, 2014). Seu título é autoexplicativo.
No próximo post da série D.O.P.E. tape seu nariz, pois mergulharemos na Enshittification. Acompanhe aqui o índice com todos os posts já publicados.
Fique agora com a música "Obsolescência Programada", na apresentação ao vivo da banda paulista Manger Cadavre?:
Para nós, tudo é feito para estragar
Pra eles, o melhor a se desperdiçar
Terceiro mundo sugado
Trabalhadores rendidos
enganados, moídos
Comendo o resto da própria carne
Pagamos caro demais
pelo obsoleto, envenenado
sem conserto
pelo tempo roubado
Abastecendo Impérios
O estrago está no radar
Como máquinas ou produtos usados
explorados, apertados
até a peça espanar
Assombrados pelo fantasma
da substituição
Engolimos orgulho com agonia
pelo medo de perder o pão
de cada dia
Pagamos caro demais
pelo obsoleto, envenenado
sem conserto
pelo tempo roubado
Notas
Esse acrônimo, além do trocadilho mais óbvio ("dope" = "droga"), é uma alusão ao álbum From Enslavement to Obliteration, da banda Napalm Death, o qual costuma ser referenciado pelos fãs como "F.E.T.O.".↩
A ideia inicial era de que os posts fossem quinzenais, com a nona e última parte publicada às vésperas do lançamento do livro Enshittification (Cory Doctorow), em 7 de outubro de 2025. Seria uma forma de celebrar a vindoura obra que deverá atrair mais atenção ao tema e facilitar sua compreensão, uma vez que ainda se encontra um tanto disperso. Todavia, não foi possível seguir este cronograma, então o que temos para hoje é: "os posts saem quando estiverem prontos".↩
Aqui, uma referência ao verso "As phantoms without face or shape", da música Spectre Of Extinction, da banda At The Gates.↩